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22.11.12

As Intermitências da Morte

As Intermitências da Morte
José Saramago
2005
Romance

O bom de Saramago é que ele nos dá sempre questões para pensar. Desta vez a pergunta é "e se não houvesse morte?" Exactamente, o que aconteceria se ninguém morresse? É precisamente assim que começa este livro. No dia 1 de Janeiro e daí por diante ninguém morre. E assim se estabelecem as relações políticas e sociais entre o governo do país imaginário, a realeza, o clero, os filósofos, os meios de comunicação e todas as indústrias secundárias e terciárias que lidam com a morte.

Mas então acontece o belo. E o belo é a perspectiva da morte. Porque a morte, não sendo humana e nem sequer se escrevendo com éme maiúsculo (tal como ela faz questão de apontar), também sente. E neste caso, ela sente amor.

É um livro muito bonito, apesar de não começar como tal. A morte é apenas o mote para uma conversa sobre o sentido da vida e sobre a falta dela também. Saramago explora todas as perspectivas com a leveza de uma borboleta, utilizando do seu poder descritivo tão sintético e sarcástico como usual para nos dar a conhecer todas as faces deste dado (claramente um D20).

De resto, fica aqui um excerto para ler com banda sonora:


(...)Os provérbios estão constantemente a enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, passando o limiar, Boas noites, respondeu o músico, esforçando-se para dominar o espasmo que lhe contraía a glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas tremendo, acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi, Suponho que veio para trazer a carta,. que não a rasgou, Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são má conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo a sério, é o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, é outra coisa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão, Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe pr cima quando lá chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música., de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöhen o que mais tarde seria chamado de opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem, que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos delas já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se dera, à mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e tirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaxo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum,, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte, ninguém morreu.

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